Três vacinas contra crack e cocaína serão testadas em humanos após sucesso em animais. Elas ensinam o sistema imunológico a neutralizar a cocaína e o crack.

Apesar de terem o mesmo objetivo, as três vacinas funcionam de formas diferentes.

Duas são injetáveis e uma é inalável. Todas foram criadas para que essas drogas não tenham efeito no corpo humano.


A primeira vacina

A pioneira das três vacinas é a dAd5GNE, que está sendo desenvolvida há uma década por cientistas da Universidade Cornell, nos EUA.

“O problema da cocaína é que ela é composta por moléculas muito pequenas, que o sistema imunológico não identifica”, explica o médico Ronald Crystal, diretor do projeto.

Por isso, eles criaram uma vacina que utiliza um vetor viral (mesma estratégia empregada nas vacinas da Covid criadas por AstraZeneca e Johnson & Johnson).

A base é um adenovírus, o Ad5, que já circula em humanos e causa resfriados leves. Ele é acoplado a uma molécula chamada GNE – cuja estrutura é parecida com a da cocaína.

A vacina está pronta. Ela é injetada em três doses ao longo de dois meses.

A ideia é que o organismo aprenda a produzir anticorpos contra a molécula GNE. Aí, quando/se a pessoa usar cocaína ou crack, esses anticorpos se conectarão às moléculas da droga.

Com isso, o conjunto ficará grande demais para atravessar a chamada barreira hematoencefálica (uma camada de células que reveste o cérebro e barra a maior parte das moléculas).

E o crack/cocaína não terão efeito no corpo humano porque as moléculas da vacina também não conseguem penetrar no cérebro.

O imunizante se mostrou eficaz em testes com ratos e macacos(5). “Concluímos que a vacina produz altos níveis de anticorpos para cocaína, tanto contra o uso diário [da droga] quanto para doses maiores, e sem reações adversas”, diz Crystal.


Resultados da primeira vacina

Em ratos que receberam uma dose de cocaína, a vacina reduziu em 55% a quantidade da substância no cérebro.

A proteção se manteve, e até melhorou um pouco, com o uso contínuo da droga: após três doses de cocaína, 64% dela foi bloqueada e não entrou no cérebro.

A redução não é total porque os anticorpos presentes no organismo não conseguem se conectar a todas as moléculas da droga antes que ela penetre no cérebro (não dá tempo).

Mas a diminuição foi suficiente, no estudo, para suprimir os efeitos da cocaína: os ratinhos vacinados ficaram calmos, sem andar freneticamente pelas gaiolas, mesmo após receber a droga.

Em macacos, os resultados foram ainda melhores. Em animais não-vacinados, que receberam uma dose de cocaína, a droga conseguiu inativar 62% dessa proteína, em média. Com isso, os cérebros deles ficaram inundados de dopamina – e os bichos demonstraram os sintomas típicos do uso da droga. Normal.

Mas, em macacos vacinados, o resultado foi muito diferente. Exames de tomografia computadorizada revelaram que parte da cocaína até penetrou no cérebro, mas ela não conseguiu anular nem 20% da proteína DAT.

Ou seja, o narcótico realmente não fez efeito (em humanos, para que a ação da cocaína comece a ser sentida, a droga precisa anular pelo menos 47% da proteína DAT presente no cérebro.

Os estudos foram relativamente curtos (13 semanas para os roedores e 7 para os primatas), mas suficientes para que os cientistas da Universidade Cornell recebessem, em 2016, permissão do governo americano para testar a dAd5GNE em seres humanos.

O estudo, que está sendo executado em parceria com o National Institute on Drug Abuse, foi desenhado para ter 150 participantes: um grupo recebendo placebo, e outro a vacina. A coleta de dados termina ao final de 2023, e a pesquisa deverá ser concluída (8) em junho do ano que vem.

“A maior dificuldade é recrutar voluntários. E, mais ainda, garantir que eles continuem participando”, admite Crystal.

Isso porque os participantes do estudo precisam ser usuários habituais de cocaína ou crack. Por questões éticas, os cientistas não podem aplicar a droga nos voluntários (como é feito nos testes em animais). Então a única forma de saber se a vacina realmente funciona é verificar se, após recebê-la, a pessoa reduz o uso de entorpecentes no seu dia a dia.

Outra exigência do teste: antes de ser vacinado, cada voluntário precisa dar uma pausa na cocaína – e ficar 30 dias sem usá-la. “É uma estratégia para testar com maior segurança os níveis de anticorpos”, diz Crystal.


A segunda vacina é brasileira

Uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais, que também está desenvolvendo uma vacina contra a droga, lidou com essa questão de forma inteligente: decidiu focar sua pesquisa em gestantes.

“Nós recebemos, no hospital da universidade, muitas mulheres grávidas viciadas. Sabemos dos danos que a droga provoca nesses casos, e gostaríamos de reduzir esse prejuízo”, diz o médico Frederico Garcia, que é pesquisador da UFMG e um dos líderes do estudo.

De fato, o uso de cocaína ou crack na gravidez tem consequências muito graves. A mulher pode sofrer pré-eclâmpsia severa (um tipo de hipertensão que pode levar à morte), aborto espontâneo ou parto prematuro com complicações.

A droga também contrai os vasos sanguíneos da placenta, estrangulando o fluxo de nutrientes para o feto, que pode apresentar baixo peso, malformações e até síndrome de abstinência – já que, durante a gravidez, ele recebe a droga por meio do cordão umbilical.

O bebê já nasce viciado. “Esses recém-nascidos não dormem bem, não mamam. As mães, que já estão fragilizadas, e poderiam ter nos bebês um incentivo para evitar o vício, acabam por doar as crianças”, diz Garcia.

A vacina brasileira, assim como a americana, também utiliza a proteína GNE – que é estruturalmente parecida com a cocaína. A diferença é que essa molécula não é acoplada a um vírus, mas a uma segunda proteína, chamada KLH, extraída de um molusco.


Resultados da vacina brasileira

A vacina já foi aplicada em ratos, e funcionou. Em testes com 26 ratas grávidas, que receberam cocaína durante a gestação, houve 30% menos abortos. A vacina gerou ninhadas com 27% mais filhotes, e eles eram em média 50% maiores.

Os ratinhos também não nasceram com síndrome de abstinência da droga – e receberam anticorpos contra a cocaína por meio do leite materno. Os resultados (9) foram publicados em 2021 em uma revista científica importante, a americana Molecular Psychiatry.

“Está tudo pronto para a próxima etapa, os testes em humanos”, diz Garcia. A molécula GNE-KLH já foi patenteada, inclusive. Para chegar ao estágio atual, os cientistas da UFMG tiveram o apoio de uma série de instituições, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas e a Câmara dos Deputados.

Os pesquisadores da UFMG já enviaram à Anvisa um pedido de autorização para os estudos clínicos, em voluntários, que levariam aproximadamente dois anos. O problema é conseguir verba e segurança jurídica – já que a cocaína é uma droga ilegal.

“Temos recursos humanos e técnicos para realizar os testes clínicos dentro da UFMG”, afirma o professor. “Mas falta investimento e acesso a lotes da droga, de forma segura.” Isso porque a síntese da molécula GNE, que é o elemento ativo da vacina americana e também da brasileira, requer cocaína como matéria-prima (10).

Enquanto nos EUA parte da droga apreendida pela polícia é destinada a estudos científicos, no Brasil as cargas costumam ser totalmente incineradas. “Não conseguimos encontrar parceiros dispostos a participar, porque o acesso às substâncias [necessárias] não é devidamente regulamentado”, diz Garcia, que ressalta a importância da pesquisa.

“Diante dos testes pré-clínicos, sabemos que a vacina é eficaz para bloquear a circulação da molécula de cocaína [no organismo], e não tem efeitos colaterais significativos. É uma solução inovadora, para uma doença contra a qual não se tem remédio”, resume.


A terceira vacina é inalável

Uma possível solução está em outro imunizante anticocaína, que está sendo desenvolvido pela Universidade Duke, nos EUA.

Ao contrário das outras vacinas, injetadas no braço, ela é inalável, podendo ser aplicada pelo próprio paciente. Em ratos, se mostrou eficaz: eliminou os sintomas comportamentais da cocaína (18).

A proposta dessa vacina é neutralizar a droga já nas vias aéreas, antes mesmo de ela cair na corrente sanguínea. “Vacinas aplicadas em uma mucosa têm maior probabilidade de induzir anticorpos do tipo IgA”, diz o imunologista Herman Staats, líder do estudo.

A imunoglobulina A, ou IgA, é um anticorpo de ação rápida, a primeira linha de defesa do organismo contra doenças. Ele serve para ganhar tempo, enquanto o corpo fabrica outro tipo de anticorpo, o IgG, que circula no sangue e é mais poderoso – mas demora para ficar pronto.

A vacina da Universidade Duke é focada na cocaína em pó, e não funciona contra o crack (porque ele é absorvido pelos alvéolos pulmonares, e não através da mucosa nasal, que é onde esse imunizante age). Ainda não há previsão de testes em humanos.


Dependência psicológica

As vacinas antidroga têm outro grande porém: elas bloqueiam ou enfraquecem o efeito de determinada substância, mas não fazem nada contra a dependência psicológica.

Isso significa que o viciado pode acabar consumindo mais cocaína ou crack, para tentar sentir algum efeito. “As pessoas precisariam de doses muito grandes da droga, ministradas muito rápido, para superar a barreira proporcionada pelos anticorpos”, admite Staats. Nessa situação, haveria risco de overdose.

A tendência ficou clara nos testes da vacina TA-CD: quanto mais anticorpos havia no sangue de cada voluntário, maior também o nível de cocaína na urina dele. Os viciados estavam aumentando o consumo da droga, em busca da sensação que tinham antes de serem vacinados.

“Os pesquisadores levaram para os testes pessoas que não estavam dispostas a abandonar o vício. Nesses casos, a vacina realmente não é suficiente”, diz Garcia, da UFMG.

Além do perigo de overdose, e a possibilidade de que os viciados aumentem seu consumo de cocaína ou crack, também haveria outra questão. Da mesma forma que parte da sociedade hoje defende o encarceramento dos usuários de drogas, poderia haver um clamor pelo uso forçado dos imunizantes.

“O usuário poderia ter que escolher entre a prisão ou uma vacina”, afirma o médico australiano Wayne Hall, pesquisador da Universidade de Queensland, em um artigo sobre as implicações éticas das vacinas antidrogas (19).

Em suma: as vacinas anticocaína ou crack têm efeito curto, podem acabar aumentando o consumo da droga, ou se transformar em instrumento de opressão contra pessoas já fragilizadas.

“A vacina é a estratégia mais promissora para o tratamento de dependência química. Mas, sem o paciente estar motivado, não adianta”, afirma Garcia, da UFMG.

Para que a pessoa consiga se levantar, enxergar uma luz e ver que é possível deixar o vício, ela precisa de ajuda. A vitória contra uma droga nunca vai depender só de outra droga  – mesmo que seja uma vacina. É necessário, também, algo bem maior e mais forte: o apoio da sociedade.

Usuários de drogas no Brasil

A dependência é uma doença grave, e que vem piorando. As ruas das metrópoles, e até de cidades médias, têm cada vez mais gente viciada, jogada pelos cantos. E essa população é ainda maior do que parece.

Segundo o Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas, elaborado pela Fiocruz e pelo IBGE, 1,4 milhão de brasileiros entre 12 e 65 anos já usaram crack pelo menos uma vez (11).

E esse dado é de 2015, bem anterior à explosão da cracolândia paulistana, por exemplo.

Outros países têm problemas similares: um relatório publicado pelo ministério da Justiça dos EUA, também em 2015, estimou que 8,8 milhões de americanos já tinham experimentado crack (12).


Com informações da SuperInteressante


Espalhe Notícias do Bem